Josie Conti

ENTREVISTA COM JOSIE CONTI

Entrevista realizada por Marina Marino

  1. Olá, Josie. Uma alegria ter você conosco nessa edição da Revista. De psicóloga à escritora, conte para a gente como foi sua trajetória.

Certa vez eu ouvi uma citação que dizia que nós existiremos nesse mundo enquanto permanecermos na memória de alguém que se lembre de nós. Da mesma forma, penso que somos influenciados e influenciamos o meio em que vivemos desde o momento em que nossa existência é cogitada por alguém.

Somos seres que tocamos e somos tocados pelo outro a cada instante. É algo que vai muito além, embora não exclua o toque físico.  Nós somos tocados por olhares. Somos tocados por palavras. Somos tocados por histórias. Somos tocados pela transgeracionalidade de nossa família que, ao nos receber, já nos ensina sobre o mundo que conhece e sobre os subterfúgios que devemos usar para sermos bem adaptados a ele. Herdamos olhos castanhos, azuis ou verdes e suas variâncias, mas também herdamos medos, traumas, manias, formas de amar ou de desamar. Herdamos projetos e projeções. Herdamos sins e nãos. Mas, da herança mais bendita àquelas que talvez possamos chamar de “malditas”, são esses toques que nos humanizam em nossas qualidades e defeitos. São esses toques que, ora nos dão voz, ora nos calam. São esses toques que, por serem tão diversos e particulares, nos tornam seres únicos.

Eu fui tocada por uma mãe delicada nos gestos e guerreira nos atos. Pessoa que, através do magistério, criou suas filhas com pouquíssima ajuda do marido, ausente financeira e afetivamente, embora muitas vezes tenha estado fisicamente presente dentro da casa.

Sou fruto de uma cidade pequena e de colégios públicos, que permitiram o encontro entre as classes sociais sem que isso tivesse um nome claro, coisa que não exclui as diferenças, mas diminui os abismos e aumenta a proximidade com a realidade do outro.

Fui neta de um avô presente que construía balanços em árvores e que estava ao meu lado quando eu caía e precisava que alguém curasse meus joelhos ralados e meu orgulho ferido. Fui, muitas vezes, os olhos para uma avó que perdeu a visão, mas jamais perdeu a dignidade.

Fui, ainda criança, tocada pelo interesse pelos livros, pelos filmes e pelo comportamento humano, que eu tentava tanto entender. Fui tocada pela companhia e pela solidão. Pelo pertencer e pela exclusão.  Fui mais uma vez privilegiada quando não estudei exatamente onde eu queria e mesmo quando meus primeiros trabalhos não aconteceram nas áreas que eu fantasiava serem as ideais. Nem sempre conseguir o que se quer é o melhor que pode acontecer para nós.  Assim, tive uma trajetória profissional em que, muitas vezes, trabalhei exatamente nas áreas em que achava que não queria trabalhar. O bom da necessidade é que ela nos empurra para a realidade e nos permite ver para além dos sonhos ilusórios. E assim trabalhei na área escolar, com RH e saúde do trabalhador. Trabalhei até mesmo com pacientes terminais, aos quais tive a honra de ouvir e segurar as mãos antes que deixassem esse mundo.

Trabalhei, ainda, em empresas privadas, de forma autônoma, e no serviço público. Acabei pedindo exoneração do serviço público, o que entendi ser mais um privilégio, visto que nem todas as pessoas conseguem ter essa opção por viver realidades muito diferentes da minha Tive, e ainda tenho, a possibilidade de trabalhar no mundo digital e de me sustentar com isso, embora, claro, nem sempre seja fácil transitar por um meio onde as regras e a ética são coisas pouco delimitadas.

Há cerca de 10 anos trabalho na Internet, com redes Sociais. Faço gestão de três sites que são revistas digitais e publicam artigos sobre comportamento, notícias e entretenimento. Também realizo atendimentos psicológicos online e, há pouco tempo, publiquei meu primeiro livro pela editora Srta. Lô, o  “Todo Pé na bunda nos empurra para frente”.

  1. O que surgiu primeiro: a vontade de escrever um livro ou a história foi sendo construída muito antes dessa vontade?

 

Eu nunca sonhei em ser escritora. Foi preciso um momento de dor para que o sentimento que transbordava dentro de mim se transformasse em escrita. Traduzir a dor em escrita é uma forma de torná-la menos doída. Talvez seja uma espécie de canalização que vai além da organização do pensamento e dos sentimentos, mas aja pela força arrebatadora da criatividade que nos permite novas versões de nós mesmos, incluindo versões opostas e contraditórias.  Tem uma minissérie chilena de 3 capítulos na Amazon Prime chamada “Isabel: A História Íntima da Escritora Isabel Allende”. Nela, encontramos muito da vida de Isabel Allende, uma das escritoras mais lidas da história da América Latina. A obra desta renomada autora tem como pano de fundo a ditadura chilena e o golpe militar que o país sofreu em 1973.  Em um dos momentos da minissérie, a protagonista que interpreta Isabel, ainda no começo de sua carreira como colunista de revistas femininas, relata uma observação que recebeu do escritor Pablo Neruda. Segundo Allende, ele teria dito que a considerava uma escritora de revista um pouco exagerada, e, em seguida, sugeriu que ela deveria ser escritora de literatura. A fala de Neruda aparentemente fez sentido para Isabel quando, em um momento muito difícil da própria vida, marcado também pelo exílio, ela mergulhou na escrita de “A casa dos Espíritos”, seu maior sucesso. Eu jamais teria a pretensão de escrever uma obra à altura do trabalho de Isabel Allende, mas eu quero dizer que uma obra, seja a obra que cada escritor é capaz de fazer, é fruto de toda sua existência e já pertence a cada escritor mesmo antes de ser traduzida em palavras.

 

  1. “Todo pé na bunda nos empurra para a frente” é um título bastante sugestivo. Quem nunca levou um? A questão é que nem todas nós conseguimos seguir em frente, como Diva, a personagem do livro, conseguiu. Quem olha para Diva, olha para si mesmo?

 

Eu penso que quem olha para Diva testemunha a possibilidade de existência que Diva construiu para si mesma com os recursos pessoais que ela foi capaz de utilizar naquele momento. Não é um livro de receitas ou uma alternativa que, na prática, podemos generalizar, mas é uma das grandes contribuições da arte, em especial da literatura, que é oferecer diferentes formas de compreender e reagir às realidades que nos cercam. Assim, o livro explora um caminho: na vida de Diva “o pé na bunda” a empurrou para frente. Logo, essa foi a sua verdade.

 

  1. Você aborda a necessária desconstrução de crenças, ainda tão arraigadas neste inconsciente coletivo do feminino. Fale um pouco mais sobre isso.

 

Penso que, quando desconstruímos uma crença, já temos várias outras para reavaliar. As grandes verdades são perigosas e caminham em relação próxima com extremismo, local que costuma ser inflexível. Penso que o exercício do amadurecimento perpassa a adaptabilidade e esse nosso “reavaliar” e entender o que, em cada momento de nossas vidas, realmente faz sentido para nós.

O feminismo também se adapta diariamente para tentar dar conta dessa nossa cultura que possui sólidas bases patriarcais e que também molda o inconsciente feminino atual. É preciso questionar o que nos é entregue como pronto e definido porque mudar conceitos estruturais às vezes exige que façamos mais do que polir arestas. É um trabalho duro e continuo. Falando nisso eu me lembro do livro “Um teto todo seu” que a escritora inglesa Virginia Woolf escreveu na década de 20. Nele, ela discorria sobre a necessidade da mulher ter sua própria independência financeira para ser capaz de fazer escolhas pessoais mais livremente. Isso, claro, pensando nos alicerces do feminismo que era um feminismo ainda da mulher branca que pensava em sair para trabalhar enquanto as mulheres negras nunca tiveram essa problemática, pois estavam na base da pirâmide, e muitas vezes ainda estão batalhando até mesmo pelo seu “lugar de fala”, como tão bem descrito pelo livro homônimo de Djamila Ribeiro.

No “Todo pé na bunda nos empurra para frente”, a personagem Diva, dentre muitas outras coisas, se questiona a respeito dos ideais estéticos, assim como reavalia a necessidade ou não de se ter um parceiro amoroso para uma mulher se sentir mais feliz e completa.

 

  1. Quem escreve sabe que um livro só acontece no leitor, quando há uma ressonância entre eles. Como tem sido o retorno de quem lê seu livro

Eu vejo esse livro como o fechamento de um ciclo, um arremate, uma possibilidade de criar a partir do desconforto. Penso que inseguranças sempre nublam nossos olhares quando sabemos que, mesmo através de conteúdo que mescla realidade e ficção, mostramos muito de nossa essência e nos desnudamos para a observação externa.   A realidade, entretanto, costuma se apresentar mais gentil do que nossas neuroses.

Os primeiros leitores de quem tive um retorno demonstraram empatia com a protagonista e, mais do que isso, também falaram, direta ou indiretamente, dessa ressonância com algumas das temáticas universais pelas quais Diva passou, como os processos de construção da própria identidade, mecanismos de defesa, luto, amor, raiva….E, principalmente, desse processo que visa mostrar que, muito além da perfeição, nossos momentos de felicidade costumam estar ligados com a aceitação de nossa tão imperfeita humanidade.

 

  1. A literatura tem um poder enorme de revelar quem está por trás da caneta. O que o leitor de Todo pé na bunda nos empurra para a frente vai descobrir sobre Josie Conti?

 

A primeira coisa que me vem à cabeça é a frase “Eu não sei”. Eu não sei porque a percepção que as pessoas acharão que têm de mim será a percepção que elas criarão a partir de seu próprio ponto de vista e, se eu disser o que eu acho que elas descobrirão, penso que não farei justiça à fantasia delas. Eu os estaria conduzindo para a minha própria perspectiva. Mas, se eu insistir em dar a minha impressão pessoal acredito que talvez o leitor descubra algo da maneira que eu entendo a vida: partir de um lugar onde você pensa que sabia algo, descobre que não sabe, e tenta encontrar novas formas de re-saber (com a liberdade de brincar com as palavras). Nesse processo muitas vezes percebemos que lá existe muita coisa que já conhecíamos, mas que aquilo que sabíamos já não é mais a mesma coisa. Essa troca de lugares e percepções nos soma e, com sorte, nos deixa mais sensíveis com relação a experiência do outro e a nossa própria experiência.

 

  1. Na capa do livro vemos a protagonista em Paris, diante da Torre Eiffel, um sonho para muitas de nós. Você espera que seus escritos alcancem lugares distantes também?

Na capa, Diva está sentada em uma mesa e olha por uma janela. Ela está só e observa o mundo que está do lado de fora. As experiências pelas quais ela passou momentaneamente a desestruturaram. Então ela olha de volta para o mundo como quem girou um caleidoscópio e observa o resultado final. Durante esse giro, ela questionou verdades e fantasias. Ela se descabelou ao ver-se de ponta cabeça. Ela tentou se segurar, mas nem sempre encontrou um ponto de apoio. Até que o giro que lhe pareceu um terremoto interminável a colocou de volta sentada, ao lado de uma mesa, observando uma janela e mirando novamente a realidade. Talvez, naquele momento, Diva tenha voltado a sonhar. Mas, para isso, ela precisou lidar com todo tumulto de sua interioridade. A calma da cena é a calma da pessoa que reencontra um ponto de equilíbrio de onde iniciará sua próxima jornada: seja ela interna, sozinha, acompanhada, no quarteirão ao lado, ou em Paris. Por que não? Dessa forma, o lugar distante poderia ser o outro lado do mundo, mas também apenas um passo além de onde tudo começou.

  1. A literatura está mostrando a você um novo mundo. O que pretende fazer com isso? Tem vontade de escrever mais sobre outras situações vividas por mulheres?

Escrever outros livros seria lindo. Entretanto, preciso contar que nunca pensei nesse livro como “um livro para mulheres”. Eu não tinha esse objetivo. Escrevi para arrumar a minha bagunça.  As coisas estavam completamente fora do lugar. Aí deixei que a Diva nascesse e que ela fosse a minha criação possível. Fantasia e realidade, riso e rancor, luto e vingança. Humor e palavrões. Deixei que a minha humanidade falasse através da fantasia e bailasse com os fatos conforme os parágrafos fossem ganhando forma. Falei como mulher talvez porque usar a voz feminina me deixe mais confortável. Tenho a impressão que ser um personagem homem exigiria de mim uma capacidade como escritora que eu ainda não tenho. Mas, seja como for, se ela ajudar a dar voz a outras mulheres, sinto-me muito feliz. Então, que seja voz, a minha e a de quem quiser utilizá-la.

Em nome da Revista Voo Livre agradeço sua disponibilidade para essa entrevista. Nossas páginas estão sempre abertas para você. Beijão.

Josie Conti

Josie Conti é idealizadora, administradora e responsável editorial do site CONTI outra e de suas redes sociais. Psicóloga com mais de 20 anos de experiência, teve sua trajetória profissional passando por diversas áreas de atuação como educação, clínica (consultório, grupos pré-cirurgia bariátrica e de reeducação alimentar, acompanhamento de pacientes idosos e acamados, além de recursos humanos e saúde do trabalhador. Teve um programa de rádio diário, o CONTI outra, na rádio 94.7 FM de Socorro. Atualmente realiza vídeos, palestras, cursos, entrevistas, e escreve para diversos canais digitais. Sua empresa ainda faz a gestão de sites como A Soma de Todos os Afetos e Psicologias do Brasil. Possui mais de 11 milhões de usuários fidelizados entre seguidores diretos e seguidores dos sites clientes. Também realiza atendimentos psicológicos online. Diariamente, inicia seu dia com uma live no Instagram, o projeto CONTI comigo, onde oferece informações e dicas psicológicas para quem quer realizar mudanças em suas vidas. Em março de 2023 lançou o livro “Todo pé na bunda nos empurra para frente”.

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