O ser humano sempre busca encontrar algum tipo de explicação tanto para as coisas que faz individualmente quanto para os acontecimentos que perpassam as suas vidas. Somos seres ritualísticos. Fazemos chás de bebês, batizados, celebramos aniversários, elaboramos festas de formatura, nos casamos, nos divorciamos… E, quando alguém morre, normalmente ainda realizamos um encontro entre familiares e amigos para a última despedida. Esses rituais servem para nos organizar temporalmente, podem nos dar um sentido de estreitamento de laços com as pessoas que amamos ou mesmo com as nossas religiões. Eles são nossa chance de celebrar, mas também de deixar partir. Eles são nossa oportunidade de comemorar, mas também de deixar a dor fluir. Mas, para além disso, também nos ajudam na organização de uma lógica de progresso que costuma ter começo, meio e fim. Logo, quando seguimos um trajeto que, de alguma forma, é interrompido, ou tem sua ordem invertida, isso nos deixa muito confusos. Afinal, nós esperamos que um relacionamento termine por alguma razão, mas ficamos completamente desorientados, quando não achamos esse motivo. E, no caso de alguém que desaparece, essa fase final é roubada atrapalhando a construção simbólica que nos acompanha durante toda a nossa existência.
Então, frente ao vazio que ficou, a pessoa precisa traçar um caminho na construção do luto que se torna mais complexo do que seria necessário. As perguntas que ficaram sem respostas precisarão ser preenchidas de alguma forma.
Em um primeiro momento, pelo absurdo da situação, não será incomum que a pessoa que foi deixada tenha dificuldade em aceitar a concretude do abandono. Essa fase é chamada de negação.
A negação acontece quando algo é muito difícil de compreender ou aceitar. A pessoa ainda não consegue lidar com aquilo. Então, mesmo sem perceber, ela pode não reconhecer aquela realidade como dela. Nesses casos, ela tende a fantasiar que tudo está bem ou até mesmo inventar desculpas que justifiquem o “sumiço” do outro que, ainda de acordo com a fantasia, logo voltará com uma boa explicação e/ou pedido de desculpas. Pensamentos comuns nessa fase são:
“Será que alguém roubou o telefone dela/e?”
“Tenho medo de sequestro. Ou pior, e se ele/ela tiver sofrido um acidente e está em coma?
Conforme esse outro não volta e se torna inacessível, essa fantasia começa a desmoronar dando lugar a possíveis questionamentos que a pessoa pode trazer para si mesma. Assim, sua autoestima pode ficar abalada quando ela se pergunta:
“O que foi que eu fiz?”
“Onde foi que eu errei?”.
Ou ainda, quando ela dá início a sentimentos de autocomiseração e pensa coisas como:
“Será que eu não mereço uma explicação?”
“Eu era tão insignificante e descartável que não sou digna/o nem da menor resposta?
Aos poucos, outras informações podem ser assimiladas. E, em tempos de redes sociais, não é preciso muito esforço para descobrir que a pessoa continua conectada e levando, paralelamente, uma vida normal. Isso pode piorar o sentimento de menos valia e descartabilidade, pode gerar revolta e raiva, pode evoluir para a tristeza e indignação. Não existe ordem exata para todas essas flutuações de humor e sentimentos que se confundem com a dor da perda e o que é mais complicado: tendem a se misturar com a saudade. Sim, saudade, pois não podemos nos esquecer que a pessoa que ficou está em sofrimento porque não esperava aquele abandono. E, mesmo que não tenha sido capaz de detectar pistas de que aquilo poderia acontecer, caso esse tenha sido o caso, o que interessa é o sentimento atual.
Também é importante ressaltar que aquele que se vai, muitas vezes, já planejou o abandono internamente por algum tempo. Logo, além de ir sem olhar para trás, essa pessoa já elaborou sua saída e fez a escolha do não enfrentamento. Quem ficou não teve escolha e ainda tem que lidar com uma “morte” abrupta e de um tipo difícil de digerir: a morte daquele que permanece vivo.
Outro ponto importante é: quando isso acontece, cada pessoa tem o seu estágio de amadurecimento. Então, se esse abandono já é difícil para um adulto, o quão danoso ele pode ser para um adolescente que ainda não desenvolveu totalmente a sua autoestima? Em casos assim, não raro, podemos ver pessoas que também tentam se adequar ao contexto e procuram agir como se elas mesmas não tivessem sentimentos e, por não saber como lidar, podem tentar normalizar o abandono com frases como:
“Hoje em dia todo mundo faz assim”.
“Antes eu me importava, mas agora eu também faço a mesma coisa.”
Uma tentativa de sobrevivência para sofrer menos pode ser o embotamento afetivo. Em outros casos, pode ser aplicada uma espécie de vingança em relacionamentos futuros. É como se a pessoa pensasse:
Quando eu sofri ninguém se importou. Agora eu também não me importo que sofram. (e talvez até sinta algum prazer com isso, pois agora é ela que abandona e tem o poder de decisão).
Ou seja, implanta-se um mecanismo de defesa que diminui o vínculo e a empatia com o outro:
“Eu machuco porque também já me machucaram.”
“Hoje eu procuro não me apegar.”
Ou seja, alguém que sofreu ghosting, para lidar com isso, corre o risco de aderir ao mesmo tipo de comportamento.
Quando a coisa se “normaliza” a esse ponto, tanto quem abandona quanto quem é abandonado pode perder a noção real do dano causado.
E COMO FICA A SAÚDE MENTAL?
As pessoas reagem de formas diferentes aos eventos que acontecem em suas vidas. Em alguns momentos, a pessoa pode reagir melhor a um evento inesperado. Em outros, talvez a mesma pessoa esteja mais vulnerável e não tenha recursos suficientes para administrar algo que a machuca. Existem, também, para cada um de nós, temas que são mais sensíveis e desestabilizadores. Mas, mesmo levando em consideração as variações pessoais no estado emocional de cada um, podemos listar algumas características comuns em pessoas que estão passando pelo ghosting.
Assim, se falamos anteriormente na confusão inicial, e que pode até colocar a pessoa em um estado de negação com relação à nova realidade. Logo, caminharemos para um provável SENTIMENTO DE IMPOTÊNCIA.
O sentimento de impotência é muito intenso, pois a pessoa que ficou não teve a oportunidade de reagir, de falar sobre seu ponto de vista e nem de externalizar seus sentimentos. Ela também não teve a chance de tentar arrumar as coisas e salvar a relação. Essa etapa, no ghosting, é roubada. Assim, o processo de luto fica mais complexo porque a pessoa não pode realizar as etapas que a ajudariam a ter o sentimento de que fez o que poderia fazer, mesmo que tudo acabasse no final. E, além disso, não teve a oportunidade de ter frustrações anteriores que a ajudariam a se conformar gradativamente, caso a relação tivesse um término menos abrupto.
Em relacionamentos não é incomum que um casal tenha pequenos términos e retornos antes de um fim. Esse processo pode ser necessário exatamente para que as pessoas compreendam que fizeram o que podiam. Às vezes, depois de ciclos assim, alguns ficam juntos, em outros casos, o relacionamento acaba, no entanto, as tentativas aconteceram e ajudaram a consolar, mesmo que uma das partes saísse dela ainda gostando.
Após o ghosting, outro sentimento comum, é o receio de confiar em relacionamentos futuros: TRAUMA EMOCIONAL
Para que novos relacionamentos sejam iniciados em nossas vidas, uma das coisas que precisamos é “baixar a nossa guarda”. Ou seja, para nos abrirmos para o outro, de certa forma, temos que estar dispostos a confiar e até nos mostrarmos vulneráveis. Essa predisposição, contudo, pode ficar abalada quando, em uma experiência anterior, a pessoa investiu seus sentimentos imaginando que existia uma reciprocidade e a pessoa com que ela se relacionava foi embora. Nesses casos pode levar mais tempo para que a pessoa consiga se sentir suficientemente segura para se relacionar novamente. O trauma acontece quando a pessoa, tempos depois do acontecido, ainda revive a experiência dolorosa como um filme que se repete mentalmente e, a cada nova exibição mental, mais uma vez é invadida por sentimentos de dor, frustração e impotência como se fosse o mesmo dia.
Outro ponto delicado nesse processo é que a AUTOESTIMA da pessoa pode estar abalada porque, na falta de respostas do outro, em uma tentativa de explicação, a pessoa pode voltar a culpa para si mesma e se julgar não merecedora de amor. Nesses casos, a justificativa pessoal pode ser avaliar-se como indigna, a culpa recai em seu próprio senso de valor, e não na irresponsabilidade afetiva do outro.
Texto da psicóloga Josie Conti
Fragmento do livro: Ghosting: como enfrentar os dias mais difíceis depois que a pessoa que você ama some sem dar explicações