Almas amortecidas perambulam pela rua opaca. São tempos anêmicos e rastejantes. Onde deveria existir vida, há apenas desconectados encontros e olhos fugidios. A rotina traz concreto demais às ruas e ao olhar. O cimento nos olhos arranha e dói.
Ressentida pela falta de luz, a vida reage num último estrebuchar de carne pulsante. O único som possível é preenchido pela raiva. Há muita raiva. Há raiva de tudo e de todos.
Descrença é fruto da desilusão, já sabemos; mas se um dia os grandes céticos foram os antigos românticos, hoje impera apenas a tristeza sem referênciais. Não há luz no fim do túnel e nem beco que se abra em uma esplêndida praça. As cortinas já não se abrem para o início do espetáculo. Ao contrário, elas desmoronam e esmagam toda e qualquer possibilidade de fantasia. O passado glorioso a ser reverenciado já não passa de um desfile de figuras caricatas e exemplos toscos de tempos idos; tudo é irreal e a memória é preenchida por fatos reinventados.
Quando a escuridão é tamanha, até a mínima luz pode macular os olhos. A falta de luz, então, ecoa e reverbera no outro a dor de uma anestésica perspectiva. Nada se vê.
Assim, o caminhar segue sem música de fundo; entre grosserias explícitas e veladas. A reluzente cristaleira só serve para anteceder a quebra dos pratos. Sobraram só os cacos.
Mas há cacos e dos cacos reorganizados há de surgir o brilho de uma periférica liberdade. Da prisão que vive mergulhada na escuridão, talvez emerja a fagulha da recriação. Dos mais doentios momentos há de surgir a total e completa ressignificação da realidade. A prisão também liberta.
No atual contexto, talvez os olhos possam ver melhor as sombras que a totalidade de uma luz não perminiria conceber.
E se um toque ainda assusta, tente apenas olhar para mim.
Não espero muito, mas ouso acreditar que a partir desse pouco possa nascer a minha totalidade.
Sobre a autora:
Josie Conti é psicóloga e editora do site CONTI outra.
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Nota: artigo inédito escrito originalmente para a edição impressa da Revista Laranja Original, no. 3, verão 2020.