Alguma vez vocês já viram os olhos de uma pessoa ou animal logo após a sua morte? Espero que não precisem ver, mas se virem, vocês imediatamente saberão que aquele corpo, já sem vida, não leva mais uma alma dentro de si e que não há nada que possamos fazer para promover a reconexão com aquela que ali já não está mais. Um corpo sem vida, pelo menos na cultura ocidental, não tem mais sentido nem poesia e é por isso que, além das necessidades de descarte fisiológico, não podemos mais ficar com ele.
A contrariedade em ter que lidar com a finitude, entretanto, aliada ao desejo de dar vida aos mortos também é algo que nos acompanha. E, baseada nisso, a escritora Mary Shelley escreveu Frankenstein, um dos maiores clássicos do terror. No romance, ela relata a história de Victor Frankenstein, um estudante de ciências naturais que constrói um monstro em seu laboratório.
Técnicas como a taxidermia, que reproduz o que um dia foi um ser vivo preservando apenas a sua pele, também são uma tentativa de manter ou mesmo exibir formas de vida que já estiveram junto de nós. Mas, não por acaso, a indústria do cinema – muito perspicaz com relação ao que inquieta seu público -, percebeu a aparência perturbadora desses animais empalhados e usou-os com abundância nos cenários de seus filmes de suspense e terror. Afinal, aquilo que parece vivo, mas na verdade não é, sempre assombrará o inconsciente humano.
Algumas pessoas que abusam de procedimentos estéticos podem nos passar a impressão de figuras de museu de cera ao terem seus músculos faciais paralisados. Outras pessoas, mesmo sem lançar mão de procedimentos, ao sorrirem falsamente também provocam desconforto, pois nos confrontam com um movimento de lábios que não é compatível com o movimento dos músculos da parte superior do rosto. Essa sensação desagradável pode também ser provocada pelo sorriso frio e olhos vidrados dos sociopatas. Ao cruzarmos nossos olhos com os deles, sentimos um mal-estar, mas não sabemos dizer exatamente o que está nos incomodando.
A escrita, quando desprovida da alma de quem escreve, do mesmo modo pode acarretar desconforto, distanciamento ou, na melhor das hipóteses, o mais simples desejo de ignorar.
O distânciamento emocional, requerido pela ciência, costuma ser um de seus grandes problemas quando se refere a transmissão eficaz do conteúdo. Como todos sabem não é prática usual que a ciência tenha os assuntos da “alma” em grande consideração.
E com isso, e em nome da ciência, cada vez mais livros novos se tornam velhos sem nunca terem sido lidos. É por isso que teses e dissertações de mestrado e doutorado acumulam-se sem nunca terem sido tocadas pelas mãos de mais de duas ou três pessoas, contando, é claro, a pessoa que encadernou o material. É por isso que o conhecimento passa a ser soterrado pelo tempo e pela inanição de encantamento levando consigo milhares de descobertas, avanços e curas que poderiam ter sido aplicadas para além das folhas do papel que pálidas, gélidas e carentes, aceitam qualquer coisa que nelas se acentem. Até sabemos que, algumas vezes, elas reagem e, num ato inesperado- ou desesperado-, cortam o dedo de quem inapropriadamente as explora. Entretanto, continuam reféns depositárias do que preenche o seu mundo branco.
Para que exista aprendizagem significativa, daquela que aceita se aconchegar do lado de dentro da gente, é preciso que haja coerência entre lábios que sorriem e proferem palavras e olhos que brilham esperanças e sonhos. Essa linguagem, mesmo que seja técnica, deve ser capaz de transbordar e sobreviver ao que é simplesmente dado empírico, deixando claro um objetivo maior que seja capaz de mover o relógio do tempo a ponto de nos fazer entrar no jogo da realidade por termos sido capazes de compreender a abstração.
Um bloco de mármore, como bem sabia Michelangelo, será apenas um bloco de mármore se o artista não for capaz de antever em seu estado bruto a possibilidade da estátua: “Em cada bloco de mármore vejo uma estátua…”, disse ele, “…Vejo-a tão claramente como se estivesse na minha frente, moldada e perfeita na pose e no efeito. Tenho apenas de desbastar as paredes brutas que aprisionam a adorável aparição para revelá-la a outros olhos como os meus já a vem”.
Aquilo que leva a história e o conhecimento para a atemporalidade e permite a criação dos clássicos, é sedento de projeção e identificação. No mundo da estética esse conteúdo será o que podemos chamar de arte, uma vez que a arte revela a forma, mas também contém a alma, logo jamais terá olhos mortos.
Sobre a autora:
Josie Conti é psicóloga e editora do site CONTI outra.
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Nota: artigo inédito escrito originalmente para a edição impressa da Revista Laranja Original, no. 2, verão 2019.
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